(e como essa história começa muito antes do barro)
Pensando bem... há histórias que começam muito antes de sabermos que começaram. A minha não começa no barro, nem na roda do oleiro, nem no ateliê. Começa numa sala de aula no Rio de Janeiro, numa universidade na qual se olhasse o céu, via o Pão de Açúcar, e sobretudo num corpo inquieto que caminhava sempre a procura de um lugar onde pudesse finalmente pousar.
Antes da cerâmica e dos meus trinta e poucos anos, a verdade é que eu era alguém que tentava entender minimamente quem era. Nunca nada foi muito claro e acho que a beleza da vida está aí. Mas para trazer um pouco de sentido para você, querido leitor, vou começar do começo...
Fui filha única até os onze anos, boa aluna, mas desinteressada da maioria das disciplinas. A única coisa que me chamava mesmo era História, talvez porque tive a sorte de encontrar professores que me cativaram, que faziam da sala de aula um espaço de humanidade. Quando chegou a hora da escolha profissional, escolhi História um pouco como quem tenta prolongar a infância, ou prolongar a única parte da escola onde me sentia verdadeiramente bem.
Entrei na UNIRIO em 2011, com 17 anos e ali foi um lugar de revelações. Um campus, como vejo hoje, de bicho grilo. Só tinha gente "estranha", que não seguia normas, questionava e pensava demais. O campus era partilhado com Filosofia (tive bolsa em Filosofia Pop durante um ano), Pedagogia, Teatro e Música, saberes que se misturavam nos corredores e davam corpo a uma visão mais ampla da vida. Foram anos que me tornaram um ser humano melhor, me ensinaram o que é pesquisa acadêmica feita com rigor e paixão, mas que também me lançaram numa rota académica que mais tarde se tornaria terra seca (obrigada pelo conceito, Alexandre Coimbra Amaral).
Vim para Portugal fazer o mestrado. Me encantei pelo país, pela forma como se vive aqui, pela vida mais simples que se vive no Norte. Entrei no doutoramento. Pesquisei, escrevi, insisti. Mas depois de oito anos e meio de Universidade, acordei um dia com a certeza de que aquele já não era o meu caminho. Uma certeza dura, quase cruel: perceber depois de anos, quase uma década, que não queremos aquilo para o qual nos preparámos tanto.
E, ainda assim, foi nesse vazio que a cerâmica entrou... Numa tentativa tímida de resgatar um momento feliz vivido anos antes numa olaria em Barcelos, me inscrevi num workshop. Lembro bem da dor de cabeça, do corpo tenso, da sensação de estar a desaprender a forma como tudo funcionava. Mas saí de lá com outra coisa: um alívio, pequeno mas claro, de ter feito algo certo. Algo que não fazia parte do meu pensamento, mas da minha presença.
A cerâmica foi, desde o início, um convite para parar. Para respirar. Para falhar sem culpa. Para aceitar que o erro é repleto de potência. Ele pode ser reciclado, refeito, renascido. O meu erro ali não era classificado de 0 a 20. O meu erro, na verdade, me colocava no papel de protagonismo. Não houve ninguém que me salvasse dele. Pelo contrário. Ele me encarava a cada abertura de forno e fazia com que eu tentasse de novo. Caía uma vez, me levantava no dia seguinte e seguia para errar mais um pouco.
Comecei aulas regulares nessa altura. Observava o Nelson, um dos meus professores na roda do oleiro, admirava a fluidez que só o tempo dá. E ali aprendi uma das primeiras lições que moldaram tudo o que veio depois: o que repetimos nos transforma. Somos capazes de ensinar não apenas o nosso cérebro, mas também o nosso corpo.
Enquanto isso, eu aprendia outras coisas que uma pessoa só aprende caminhando. Aprendia sobre mim, sobre o país onde vivia, sobre o que significa pertencer. Ser imigrante é primeiro sobreviver, só depois, quando o corpo já não está em alerta, começamos a viver de verdade. A cerâmica me ajudou a fazer essa transição. E conhecer o homem que hoje é o meu marido, assim como a sua família, completou um sentimento que eu nunca tinha sentido tão claramente desde que decidi cruzar o Oceano: pertença.
O Corpo Cerâmico nasceu assim, de um encontro entre matéria, tempo e identidade. Nasceu primeiro como um projeto de documentação da minha trajetória, inspirado também na minha última pesquisa acadêmica no doutoramento sobre corpo e corporeidade. Hoje vejo que o nome Corpo Cerâmico foi ponte (e por isso foi e é um nome tão feliz). Depois tornou-se prática. Depois, espaço. Depois, casa.
Ensinei em espaços emprestados até que, num dia comum, virei por uma rua onde nunca tinha passado e vi uma loja com um papel a dizer que estava ali disponível um lugar amplo demais, bonito demais. Liguei por curiosidade, para imaginar um possível futuro. Em poucos dias, o espaço era meu. Não procurei, não forcei, não insisti. O sonho simplesmente bateu a minha porta como um presente de Natal e eu agarrei-o.
Nos últimos dois anos, este espaço cresceu como uma peça que recebe camadas sucessivas. Cada pessoa que entrou, que moldou, cada história foi transformando o ateliê, enriquecendo as paredes de vida e tornando o lugar aquilo que ele é hoje: casa. A casa da cerâmica: um lugar onde se chega cansado do trabalho ou da vida e se respira de novo, onde se fala, se cria, se pertence.
E, como em tudo, chegou o momento natural seguinte: a loja de materiais.
Talvez porque fazer cerâmica em casa me mostrou a necessidade de ter tudo à mão. Talvez porque, ao longo dos últimos cinco anos, experimentei tudo o que consegui encontrar (barros, engobes, vidrados, ferramentas) e percebi a diferença brutal que um bom material faz. Talvez porque, aos poucos, as pessoas à minha volta começaram a pedir recomendações, a querer usar o mesmo barro que eu, a perceber o rigor das minhas escolhas. Ou talvez porque, simples e honestamente, faltava em Braga uma oferta confiável, curada, testada e transparente.
Eu não queria abrir “uma loja” por abrir. Eu queria abrir a loja que eu teria precisado quando comecei. Um pequeno espaço com o essencial: materiais que não nos testam a paciência, que respeitam o gesto de quem está a começar, e também o de quem já vive a cerâmica como parte do corpo.
Tudo o que selecionei e que continuo a selecionar foi testado por mim. Foram anos de estudo, de frustração, de aprendizagem, de queimas falhadas, de queimas perfeitas, de anotações, de revisões. Não ofereço nada que não tenha passado pelas minhas mãos e pelo meu forno.
E, assim, a loja tornou-se apenas uma continuação do meu compromisso: fazer cerâmica com seriedade, ensinar com generosidade e partilhar com honestidade.
Hoje, quando penso neste projeto, vejo um círculo que finalmente se fecha: o ensino, o ateliê, a comunidade e, agora, a loja... todos ligados por aquilo que sempre procurei: um lugar onde seja possível pertencer e criar com paixão.
Não à toa o logo do Corpo Cerâmico é redondo...
